Pós-modernismo muda rumo da literatura, afirma Affonso Romano de Sant’Anna

05/10/2005 18:55:37 - Jornalista: Janira Braga

Dos anos 80 às datas contemporâneas, a literatura passou a ser ocupada por livros leves, de humor esotérico, exibindo características da sociedade pós-moderna, como a superficialidade, a pressa e a falta de compromisso com o tempo e a história. Essa foi a análise que o escritor Affonso Romano de Sant’Anna fez sobre a literatura na pós-modernidade.

Affonso esteve em Macaé nesta quarta-feira (5), durante entrega à Biblioteca Pública Municipal Dr. Télio Barreto de 140 livros escritos por ele, Marina Colasanti, Zuenir Ventura e Fernando Sabino, dentro do projeto “TIM Grandes Escritores”, em parceria com a Fundação Macaé de Cultura.

- Houve uma mudança na lista dos best-sellers. Até o início dos anos 70, as obras eram mais literárias, com maior peso cultural – analisa. Para o intelectual, o que caracteriza a literatura de hoje é a diversidade grande de estilos e de produção. “Não há um grupo nem estilo dominante. Mas há um problema que deve ser equacionado que é como fazer os autores do Nordeste, Sul e Norte serem conhecidos nas maiores capitais e pelas maiores editoras. O problema é a distribuição do livro”, diz.

As feiras literárias foram apontadas por Affonso como um grande ganho cultural dos dias contemporâneos. “Fui de Caxias do Sul até Recife neste ano em feiras literárias”, cita. O autor, mineiro de Belo Horizonte, já publicou dois livros sobre o Barroco - “Barroco, alma do Brasil" e “Barroco, do quadrado à elipse” -, dando uma visão nova a essa manifestação artística. “Estudo o Barroco na literatura, na gastronomia, na música, no teatro, na ciência e inclusive, estudo autores modernos que para mim são barrocos, como José Saramago, James Joyce e Guimarães Rosa”, ressalta.

A arte na pós-modernidade e na modernidade é analisada por Affonso no livro “Desconstruir Duchamp”. “Parto da perplexidade de que as pessoas vêm coisas, não entendem nada e têm vergonha de dizer que não entenderam nada”, comenta. Ele acrescenta que no livro, usa instrumentos da antropologia, psicanálise e lingüística para analisar algo que é apresentado como antiarte, mas que pretende ocupar espaço da arte. “É necessário passar o século XX a limpo, rever grandes ícones e grandes equívocos”, observa.

CULTURA DE MASSA - A cultura de massa praticada nas chamadas manifestações culturais pós-modernas foi criticada pelo intelectual. “A mídia educa mais que a escola. Vivemos na sociedade da quantidade e não da qualidade. O que caracteriza a pós-modernidade é a falta de parâmetro”, ressalta. No entanto, Affonso vê alguns pontos que a pós-modernidade pode contribuir para a literatura brasileira. “A pós-modernidade contribui a revelia dela mesma porque o pós-modernismo é ideológico, está solto no ar e quando as pessoas são envolvidas pela ideologia, ficam encharcadas e acabam produzindo. O problema é que existem dois tipos de escritores: o sintomático, que repete cacoetes do seu tempo e o autêntico, que atua criticando sobre a ideologia de sua época”, compara.

O mercado literário, lotado de livros de auto-ajuda, como os ditos de ficção de Paulo Coelho – massacrado pela alta cultura literária – também foi alvo de comentários de Affonso Romano de Sant’Anna. “Os livros em geral sempre foram de auto-ajuda, mas existe uma diferença. Uma coisa é auto-ajuda e outra é alta-ajuda. A boa literatura é alta literatura e a baixa é autoliteratura”, diz.

A vinda do filósofo francês Michel Foucault ao Brasil quando Affonso coordenava o curso de pós-graduação em Letras da PUC/Rio, durante a ditadura, também foi abordada pelo crítico literário. “Foucault revolucionou o pensamento na França nos anos 60. Foi marcante a vinda dele porque estávamos em plena ditadura e a presença dele significou abertura política e discussão de idéias. Os auditórios ficaram cheios. Foucault fazia parte de uma série de iniciativas que tomamos para combater a ditadura, entre elas, a promoção em 1973 da Expoesia, que teve como objetivo fazer um balanço na história da poesia brasileira”, conta.

Autor do poema “Sobre a atual vergonha de ser brasileiro”, escrito na década de 80, Affonso comenta que “infelizmente” esse poema voltou a circular nos meios literários e até na internet, em função da crise política nacional. “A crise é o fim da crença messiânica de que uma pessoa ou um partido pode salvar o país. Essa decepção tem a ver com o fim das utopias. São necessárias utopias, mas temos que tomar cuidado. Por isso em um poema de utopia eu disse: ‘As utopias são armas de dois gumes. Um dia dão flores. Noutro, só estrumes’”, recita o poeta.

A circulação na internet do poema trouxe à tona a relação escritor/leitor. “Essa atividade de escritor tem um tipo de diálogo com o leitor que é especial, o leitor se apodera”, diz, citando ainda as crônicas “A mulher madura”e “Antes que elas cresçam”como duas obras que geram muitos comentários. “Foram até transformadas em camisetas, extrapolando o limite do jornal”, conta.

Escritor apresentou cartomante que virou personagem de Clarice Lispector

Uma informação inusitada foi dada por Affonso, durante esta entrevista exclusiva. “Apresentei à Clarice Lispector uma cartomante que morava no Méier, com quem Clarice passou a conversar. A cartomante virou um personagem que existe em ‘A hora da estrela’, Dona Nadir, que no filme foi interpretada por Fernanda Montenegro”, revela, se referindo a um dos livros mais conhecidos de Clarice.

Affonso, que foi amigo pessoal da escritora, avalia Clarice como “uma das maiores autoras do século XX dentro e fora da literatura brasileira”. O escritor já publicou uma crônica sobre o que Clarice pensaria se estivesse viva sobre o livro “Cartas perto do coração”, publicado por Fernando Sabino e que inclui correspondências trocadas por Sabino e Clarice durante anos. No livro – também doado pelo projeto TIM Grandes Escritores para a Biblioteca Municipal – o processo de criação de Clarice e Sabino pode ser analisado por meio de palavras dos próprios autores. Affonso publicou recentemente uma longa entrevista que fez com Clarice um ano antes da morte dela, no Museu da Imagem do Som.

Criador do Programa de Promoção de Leitura (Proler), Affonso comenta que com o projeto, conseguiu em poucos anos algo inédito: reunir milhares de pessoas que faziam promoção da leitura para ensinar outras pessoas a ler. “Mas a ler o mundo. Ler os sinais que existem através de uma tecnologia tão primária que é a leitura”, filosofa, com o mistério de um grande escritor que olha o mundo com a objetividade da prosa, mas com a introspecção da poesia.